Todo dia, para ela, era sempre igual.
O despertador tocava às 5h, anunciando que era hora de recomeçar o ontem.
Todo dia, como ela, era sempre igual.
Banho, roupa, maquiagem, corre menina pra não perder o ônibus e ganhar a cara amarrada do chefe!
Condução lotada, fome de espaço, fone de ouvido, Gil cantando "transformai as velhas formas do viver". Ah! Enquanto o baiano anunciasse que o tempo é rei, tudo estaria mais ou menos calmo dentro dela.
Menos porque era mulher de colecionar reveses. Pai morreu cedo, mãe descaminhou, irmão mais novo precisava de cuidado, estudou pouco porque o sustento pedia pressa. Acorda, já é 6h da manhã, vai perder o ônibus, chefe com cara amarrada, suspiro. Tudo permanecerá do jeito que tem sido.
Naquele dia, ela não imaginaria que o hoje pediria alforria do ontem. Acordou no mesmo horário, preparou o café do irmão mais novo, a mãe não voltara ainda da noite anterior, suspirou, correu para o ponto de ônibus. Perdeu. A condução já havia passado. Pensou no chefe. Outro suspiro. Mãe Senhora do Perpétuo socorrei.
Quando chegou ao trabalho, sentiu que tudo poderia estar por um segundo. Sentou-se em sua cadeira e sentiu que ela incomodava. Estava pequena em seu corpo, quem sabe, ou talvez um pouco baixa. Aquele ambiente a sufocava, disso tinha certeza.
O chefe apareceu, sisudo, você está atrasada, ela não ouviu,
aquela cadeira estava estranha, alguém abra a janela - por favor! -, não
conseguia respirar.
Saiu. Correu para fora do prédio e respirou fundo. Movimento singular de um ser humano que já não cabia ali, e não retornou.
Sentou-se no parque à frente e chorou, tempo e espaço navegando
todos os sentidos. Quando se recompôs, percebeu que
fazia calor, olhou para o céu e chamou de seu o dia, sorriu, levantou,
bateu a areia presa na calça e andou, crescendo a cada passo. Certeza não
tinha, já havia sofrido muito na vida pra ter medo do futuro.
Não importava. Ela tinha o céu azul, o Gilberto e tudo que ela ainda não dominava para preencher os seus dias. E pensou: “ensinai-me, ó Pai, o que eu ainda não sei”.
Transformaria as velhas formas do viver, já não havia como voltar atrás. Pela primeira vez, faria diferente, beberia da coragem de ser mulher e, inevitavelmente, ceder ao seguimento do seu instinto.
Sentiu o gosto metálico do recomeço, o arrepio no
ventre, pensou no irmão, voltou pra casa e esperou ele chegar da
escola. Mãe caída no sofá, nada cheirando no fogão, chorou de novo.
Era preciso secar as lágrimas, não havia tempo de por os sentimentos no varal
da vida.
Arrumou uma mala com suas roupas e as do irmão. Para a mãe, descuidada no sofá, deixou parte de suas economias e um bilhete ao lado do café recém - passado.
“Perdoe-me, mãe. Faz um dia lindo lá fora”.
Kadydja.