Saturday, September 3, 2011

As crianças e os retalhos



Se esse mundo fosse justo, todas as crianças viveriam uma infância digna. Há poucas coisas tão tristes quanto uma criança de olhar adulto. Aquele olhar de quem já viveu os reveses que o tempo traria em seu caminho natural como desafios que a vida impõe a quem cresce e se torna dono do seu próprio destino.

Nenhuma criança deveria sonhar, como quem sonha com o distante, em ter uma bola ou uma boneca. Ou ainda um sapato de festa. Às crianças, deveriam caber apenas os sonhos da descoberta do mundo. O futuro morre um pouco cada vez que uma ser pequeno é privado desse universo lúdico, sempre que é desviado do seu ofício de imaginar, de questionar, de aprender.



Morremos nós, que já não temos tanto futuro e carregamos a bagagem pesada do ontem, toda vez que um criança sofre maus tratos ou é ensinada a julgar ou menosprezar o próximo. Damos adeus a um mundo melhor a cada criança que aprende a não se importar com os animais ou com a natureza.

Todo ser humano forma seu caráter como quem tece uma colcha de retalhos. Cada pedaço simboliza os fatos, as lições, as pessoas que passam por sua vida. São retalhos diversos, costurados pelos sentimentos que nos movem: tristeza, alegria, amor, esperança, decepção, raiva e tantos outros. São retalhos costurados pela fome e pela sede que sentimos, pelo frio ou pelo calor, pelo toque, pelas palavras de amor ou de ódio que recebemos, pela ausência e pela presença, enfim, pelo caminhar da vida.

Quando somos crianças, não somos responsáveis por nossa colcha de retalhos. Aos nossos pais, professores, aos adultos que nos cercam é delegado o ofício de costurá-la. Às crianças apenas o direito de que os nossos primeiros retalhos sejam coloridos e cosidos em linha sólida.

Certa vez conheci uma família: pai, mãe e filho. Eram do interior da Bahia e chegaram à cidade em busca de uma vida melhor. A bagagem era apenas uma sacola, encostada em um canteiro de uma rua qualquer. O qualquer era palavra que se juntava ao lugar onde iriam dormir, ao que iriam comer ou em que iriam trabalhar o sustento. Mas o qualquer não estava no sentimento que unia aquela família. E me chamou a atenção o carinho com que a criança era tratada por seus pais.

Fui conversar com o pai, que me contou toda história de luta e busca pela cidade. Contou que já tinha perdido a esperança, mas que, todos os dias, saía em busca de trabalho. Já não era emprego, já não queria ficar. Queria apenas o dinheiro que os levaria de volta à sua cidade, à sua família. Seu filho tinha três anos, mas toda vez que ele se aproximava, o pai baixava a voz para que ele não ouvisse aquele retalho em branco e preto. Era uma criança feliz, limpa, com o olhar curioso. E estava ali, diante de mim, um homem que entendia a importância de que ela permanecesse assim. Dei o restante do dinheiro para que ele voltasse pra casa.

E fui eu para minha casa pensando que nós adultos justificamos nossas atitudes para com as crianças através dos nossos próprios problemas. Agimos como se tivéssemos a permissão de transferir para eles a nossa frustração, o nosso cansaço, a nossa vida apressada, a nossa falta de dinheiro que explicaria a fome ou a ausência de afeto. Ainda que a pobreza possa explicar uma infância mais simples, ela não pode ser a razão por que muitas crianças crescem desvalidas de humanidade. Não esqueçamos que há uma linha nobre nessa costura, e que não requer dinheiro ou privilégios. Uma linha que nasce com todos nós e que não se finda. E se conseguirmos usá-la para costurar os retalhos, feios ou bonitos, fortes ou rotos, já estaremos fazendo a nossa parte.

Essa linha é o amor.

(Fotos: Crianças de Laranjeiras)

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