Saturday, August 16, 2014

Todo dia

Todo dia, para ela, era sempre igual. 

O despertador tocava às 5h, anunciando que era hora de recomeçar o ontem.

Todo dia, como ela, era sempre igual. 

Banho, roupa, maquiagem, corre menina pra não perder o ônibus e ganhar a cara amarrada do chefe! 

Condução lotada, fome de espaço, fone de ouvido, Gil cantando "transformai as velhas formas do viver".  Ah! Enquanto o baiano anunciasse que o tempo é rei, tudo estaria mais ou menos calmo dentro dela.     

Menos porque era mulher de colecionar reveses. Pai morreu cedo, mãe descaminhou, irmão mais novo precisava de cuidado, estudou pouco porque o sustento pedia pressa. Acorda,  já é 6h da manhã,  vai perder o ônibus,  chefe com cara amarrada, suspiro. Tudo permanecerá do jeito que tem sido.  

Naquele dia,  ela não imaginaria que o hoje pediria alforria do ontem. Acordou no mesmo horário,  preparou o café do irmão mais novo, a mãe não voltara ainda da noite anterior, suspirou, correu para o ponto de ônibus.  Perdeu.  A condução já havia passado. Pensou no chefe.  Outro suspiro. Mãe Senhora do Perpétuo socorrei.   

Quando chegou ao trabalho, sentiu que tudo poderia estar por um segundo. Sentou-se em sua cadeira e sentiu que ela incomodava. Estava pequena em seu corpo, quem sabe, ou talvez um pouco baixa. Aquele ambiente a sufocava, disso tinha certeza.

O chefe apareceu, sisudo, você está atrasada, ela não ouviu, aquela cadeira estava estranha, alguém abra a janela - por favor! -, não conseguia respirar. 

Saiu. Correu para fora do prédio e respirou fundo. Movimento singular de um ser humano que já não cabia ali, e não retornou. 

Sentou-se no parque à frente e chorou, tempo e espaço navegando todos os sentidos. Quando se recompôs, percebeu que fazia calor, olhou para o céu e chamou de seu o dia, sorriu,  levantou, bateu a areia presa na calça e andou, crescendo a cada passo. Certeza não tinha, já havia sofrido muito na vida pra ter medo do futuro. 

Não importava. Ela tinha o céu azul, o Gilberto e tudo que ela ainda não dominava para preencher os seus dias. E pensou: “ensinai-me, ó Pai, o que eu ainda não sei”.

Transformaria as velhas formas do viver,  já não havia como voltar atrás.  Pela primeira vez,  faria diferente,  beberia da coragem de ser mulher e, inevitavelmente, ceder ao seguimento do seu instinto. 

Sentiu o gosto metálico do recomeço, o arrepio no ventre,  pensou no irmão,  voltou pra casa e esperou ele chegar da escola. Mãe caída no sofá, nada cheirando no fogão, chorou de novo. Era preciso secar as lágrimas, não havia tempo de por os sentimentos no varal da vida. 

Arrumou uma mala com suas roupas e as do irmão. Para a mãe, descuidada no sofá,  deixou parte de suas economias e um bilhete ao lado do café recém - passado.

“Perdoe-me, mãe. Faz um dia lindo lá fora”.


Kadydja.


Monday, August 11, 2014

Menos e mais

É tão bom ter o coração em paz. Sensação gostosa de pés no chão úmido e friozinho. Mesmo sozinha, é bom acordar pela manhã e cuidar da casa, dos gatos, de si mesma.

Menos cobrança.
Mais aceitação.

A chave está na vulnerabilidade. Sim, ser vulnerável, sair pelo mundo sem o cinto da insegurança, sem os óculos do orgulho, sem o chapéu do medo. Ser você, ainda que ser você seja não querer ser você hoje.

Menos vaidade.
Mais compreensão do outro.

O coração transborda com o amor oferecido. Impossível mensurar o bem que isso nos faz. Rezar um terço pelo avô doente da amiga, mandar uma mensagem carinhosa de Dia dos Pais, ligar para a avó só para saber se ela está bem, comprar almoço para a irmã. O retorno? O coração feliz, o sorriso no seu rosto, a despedida envergonhada de toda mágoa que insistia em te visitar.

Menos passado.
Mais presente.
Toda fé no futuro.

A vulnerabilidade te presenteia com o coração inteiro. E quando se está completo, o mundo é seu. As pessoas não conduzem seus passos. Você não precisa delas para ser feliz. Simplesmente se vive. Vida boa de viver, e as coisas boas chegam, os personagens entram para construir uma nova história, o sol aninha, a lua conforta, tudo acontece!

Menos dependência.
Mais confiança.

A confiança na vida é tão importante quanto confiamos que nosso pulmão vai fazer o seu trabalho sem precisarmos observá-lo. Tudo tem seu tempo, e o tempo todo as coisas passam. Transborde-se. Ocupe-se de si mesma.

Menos os outros.
Mais você.